terça-feira, 24 de agosto de 2010

Análise: Limbo X360



Em Limbo não existem armas de fogo, antes armadilhas (letais), algumas delas horrendas. Não há temporizador nem tentativas que se esgotam ao fim de uma mão cheia, não há um único número ou barra sequer no ecrã. A marcha pelos segmentos introdutórios deixa perceber os contrastes, da inocente exploração típica de um mundo apresentado em duas dimensões, até à implacável apresentação dos primeiros quebra-cabeças. Sem se dar conta, mesmo que se progrida de forma desconfiada, tropeça-se em mais um desafio que urge resolver.





Limbo, terá, provavelmente, o mais curto manual de informações digital de sempre, porventura o mais elucidativo. Uma singela imagem do vosso comando com indicação do analógico para movimentar a personagem, o botão A para saltar e o botão B para acção. Nem mais nem menos. É, porém, o suficiente para inaugurar e permitir a exploração de um mundo envolto numa espessa bruma, quase um sonho profundo. Vive muito de fotografias. Dois ou três instantes de suste atestam isso, o carácter e tom da obra; opressivo, denso e enigmático, sem charangas. Faz-se de mistérios e não responde minimamente às questões mais triviais habitualmente concedidas por outras propostas similares. Aguça a curiosidade, altera, brilha e propõe desafios dentro de um formato que já colheu o maior brinde desta indústria. Atinge uma subtileza ímpar, desmesurada até quando o jogador se vê forçado a descrever uma série de acções macabras, sem chegar a ser sórdido.



Com efeito, poucas explicações são dadas sobre o pequeno rapaz que controlamos. No princípio nem damos por ele. “Acordamos” numa floresta despida de vida, plena de inquietação, entre o escuro dos bordos e alguma luz que perpassa. Veste-se de preto e branco. Por momentos é o quadro que sugere enquanto se espera. Tem mais razão de ser o mundo do que a história. O rapaz é uma sombra, só o vemos e conseguimos controlar bem quando está debaixo de alguma claridade ou luz turva, sempre sítios medonhos. No escuro apenas brilham os olhos, cintilantes e piscos. Perece, fecha-os. Num folheto do jogo pode ler-se qualquer coisa como ir ao encontro da irmã, a única sugestão da narrativa capaz de alumiar algo. É das poucas coisas que podemos agarrar e mesmo o final deve ficar compreendido à consideração de cada um, quando ultrapassamos o derradeiro desafio e ficamos então a saber que o jogo é constituído por mais de uma vintena de capítulos.



Os produtores queriam fazer mais – não esconderam a intenção -, acrescentar outros desafios e puzzles, só não o fizeram para não desbotar a experiência e aquilo que queriam para imagem de marca em Limbo. Na verdade fizeram pela medida certa, sente-se que mais acabaria por aborrecer e menos seria uma clara insuficiência. Não leva mais que uma meia dezena de horas até à meta. É assim com os jogos de puzzle, que obrigam a pensar. Com mais ou menos tempo despendido, é porém, tempo suficiente para assimilar e digerir com satisfação as mecânicas e diferentes abordagens na operação de cada quebra-cabeças.

No tocante à mecânica e modo de funcionamento, Limbo ganha a Braid. Braid parte de um só conceito, o poder de percorrer e dominar o tempo, para o aplicar às diversas situações e áreas. Limbo inova do princípio ao fim, presta-se a diferentes formas de resolução, cria surpresas em cada segmento e desafio que nos é dado a conhecer sob a forma de um terrível tropeção (cada descoberta de puzzle quase sempre implica uma falha, pois sem darmos conta já estamos dentro dele e sujeitos aos efeitos inevitáveis), porque tudo se torna inesperado e acaba por ser o cenário e engenhos ao redor que pendem sobre a personagem e não a personagem a alterar as regras. Para qualquer situação incumbe ao jogador trabalhar com os elementos disponíveis dentro do limitado quadro de acções disponíveis. Limbo e Mario Galaxy, à sua maneira, têm as suas proximidades.



O espaço etéreo que vos é apresentado desde instantes inaugurais - a floresta -, a seu tempo dá lugar a uma secção industrial, enchida de engenhos metálicos e roldanas, numa transição que se percorre de forma suave e bastante dinâmica. Não entram cortes ou espaço para fim de capítulo. Há uma permanente linha em movimento e ainda que o quadro de fundo tenha um tema lato subjacente, cada avanço significativo dá lugar a novas surpresas e composições do cenário. Por isso a progressão faz-se com satisfação, sabendo que após aquele desafio, um outro chegará com novas coordenadas. A secção industrial, numa fase mais dilatada do jogo, é porventura, a que melhor permitiu aos produtores trabalhar com os desafios, entre plataformas metálicas e interruptores que tornam o avanço entre plataformas mais moroso. A dificuldade agudiza-se assim como os saltos para o abismo e as serras metálicas que por vezes avançam sem apelo nem agravo ficam como última imagem.



Na floresta negra irão provavelmente perpassar os maiores mistérios. Moscas, lagos, poças de água (o protagonista não sabe nadar), aranhas gigantes que atacam até à última nesga de vida, habitantes repulsivos, constituem muito daquilo que acaba por marcar no primeiro terço do jogo. Neste último caso, estes rapazes cozinham planos e gizam do mais mórbido para deixar o protagonista sem remédio. A fasquia macabra desta função colhe no plano de armadilhas em projecção sob as quais pendem, perecidos, talvez outros protagonistas de outrora. Tudo isto é contexto de um mundo que se exprime por imagens e sons.



Numa situação e para salvar a própria pele, o protagonista terá de recolher um dos corpos, arrastá-lo até um cimo e atirar o corpo já inerte para uma vala armadilhada. No princípio, desses habitantes só um e outro chegam perto. Demonstram agressividade. Pouco depois formam um seita, até atiram dardos com pontas embebidas em veneno. A aranha gigante que monta a teia para o nosso protagonista e o ata em linho como uma múmia, volta mais à frente. Já não lhe resta muita dignidade: sobra-lhe o tronco e uma pata com espeto afiado. O protagonista desmembra-a, retirando a pata restante. Mais tarde agarra-se à pata de uma mosca, arrancando-a depois de atingir uma zona superior, enquanto esta prossegue o voo num zumbido trépido.



A sensação de peso e medida, o toque, o contacto com os objectos, as diversas situações que levam ao perecimento da personagem sucedem com uma fluidez e animação absolutamente imaculadas. Isto não só acaba por imprimir uma carga real e mais física do que é normal como transforma o conceito daquele mundo, deveras dinâmico às formas como os objectos reagem perante as diferentes provocações, deslizando, tombando e embatendo com inapelável nota de destaque. Até a delapidação da nossa personagem vai por uma bizarria quando se espeta entre bicos afiados, se afoga ou fica prensada em blocos de metal.



A ausência de música deixa o mundo transmitir a sua expressão, numa marcação de identidade, através de sons fidedignos captados ao mais ínfimo pormenor. Qualquer efeito é imediatamente acompanhado pelo som característico e fiel, quase exacerbado. Recordo uma situação particularmente notável neste percurso. A dada altura a personagem atravessa umas estruturas metálicas, tipo chapa. Sem dar imediata conta disso desequilibra uma viga de aço e faz tombar as restantes num impacto próprio de metal a bater no chão, ecoando com severidade, denunciando a asneira.

Qualquer imagem de Limbo é uma excelente carta de entrada para um mundo denso e envolto numa infinita bruma de mistério que a Playdead, enquanto produtora, soube erguer com distinta nota de equilíbrio, puxando puzzle atrás de puzzle no meio de uma povoação inelutável de surpresas. É um atrevimento e um desafio que perdura para lá da vintena de capítulos. É como uma máquina de fazer chuva. Tem um “achievement” que se chama a(l)titude.

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